{"@context":"https://schema.org","@type":"NewsArticle","mainEntityOfPage":"/colunistas/anderson-araujo/731869/antes-de-abracar-o-mundo-lucinha-me-ensinou-a-ler","headline":"Antes de abraçar o mundo, Lucinha me ensinou a ler","datePublished":"2022-07-15T12:55:00-03:00","dateModified":"2022-07-15T14:25:41-03:00","author":{"@type":"Person","name":"Anderson Araújo","url":"/colunistas/anderson-araujo/731869/antes-de-abracar-o-mundo-lucinha-me-ensinou-a-ler"},"image":"/img/Artigo-Destaque/730000/WhatsApp-Image-2022-03-16-at-095247_00731869_0_.jpg?xid=1836517","publisher":{"@type":"Organization","name":"DOL","url":"/","logo":"/themes/DOL/img/logoDOL.png","Point":{"@type":"Point","Type":"Customer ","telephone":"+55-91-98412-6477","email":"[email protected]"},"address":{"@type":"PostalAddress","streetAddress":"Rua Gaspar Viana, 773/7","addressLocality":"Belém","addressRegion":"PA","postalCode":"66053-090","addressCountry":"BR"}},"description":"Crônica desta sexta-feira (15) da coluna Daqui te Escrevo é um eio pela praia com direito a reencontro com Lucinha, a adorável professora que viou artesã.","articleBody":"\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Cruzei com ela por a\\u0026#237; depois de adulto algumas vezes. Numa dessas, n\\u0026#227;o\\r\\nresisti. Est\\u0026#225;vamos numa praia, o sol de rachar. Eu, turista. Ela, artista.\\r\\nAltiva, concentrada, mi\\u0026#250;da, igual como h\\u0026#225; mais de 30 anos. Os olhos grandes e\\r\\ninteligentes de sempre, o sotaque de mil lugares que andou, as m\\u0026#227;os \\u0026#225;geis, os\\r\\ncabelos crespos e curtos j\\u0026#225; com os vest\\u0026#237;gios dos anos. N\\u0026#227;o me percebeu,\\r\\nenquanto arrumava a banquinha e me sorriu como se eu fosse um cliente.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Embaixo de um chap\\u0026#233;u e por tr\\u0026#225;s dos \\u0026#243;culos de sol disse um oi t\\u0026#237;mido para\\r\\nvoltar no tempo em duas letras. Est\\u0026#225;vamos em Alter do ch\\u0026#227;o, Santar\\u0026#233;m. Eu, longe\\r\\nde casa. Ela, em seu habitat, que \\u0026#233; qualquer lugar. De agem, ambos.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Lucinha era um orgulho, uma hero\\u0026#237;na.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Sagaz, audaz, pra frente, vivaz, pura juventude p\\u0026#243;s-abertura democr\\u0026#225;tica.\\r\\nPromovia festas ruidosas quando dona Maria, a m\\u0026#227;e, n\\u0026#227;o estava em casa. O bom e\\r\\nvelho rock das bandas daqui e as de fora dos anos 80, vinho barato e a turma.\\r\\nMuito moleque, eu s\\u0026#243; sabia \\u0026#224; dist\\u0026#226;ncia da rebeldia na Vila Primavera, a duas\\r\\ncasas do Beco do Arreia-cal\\u0026#231;a, o r\\u0026#225;pido para a Alferes Costa.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Quase como uma foto manchada, um vidro emba\\u0026#231;ado pelo vapor, recordo de uma\\r\\nconversa no quintal dela com duas tias minhas e dois vizinhos. Um cigarro\\r\\nbarato aceso, clandestino e subversivo, naquele escuro mal luzindo os papos\\r\\nsobre paqueras, m\\u0026#250;sica, escola. Zanzava entre eles, encolhido, como um mascote.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;N\\u0026#227;o demorou, Lucinha entrou na\\u0026amp;nbsp;faculdade. N\\u0026#227;o s\\u0026#243; uma, mas duas. A\\r\\nprimeira n\\u0026#227;o tenho certeza. Talvez fosse um enfadonho curso de istra\\u0026#231;\\u0026#227;o. A\\r\\nsegunda, sim. Era Geografia. Na Universidade Federal do Par\\u0026#225;, um lugar que eu\\r\\nnem sonhava onde era. S\\u0026#243; sabia que era importante. Parece pouco, porque hoje a educa\\u0026#231;\\u0026#227;o,\\r\\nainda que dif\\u0026#237;cil para muitos, j\\u0026#225; \\u0026#233; mais \\u0026#237;vel. Na para \\u0026#233;poca foi um\\r\\nfeito,\\u0026amp;nbsp;um\\u0026amp;nbsp;matar\\u0026amp;nbsp;o\\u0026amp;nbsp;gigante\\u0026amp;nbsp;com\\u0026amp;nbsp;uma\\u0026amp;nbsp;baladeira.\\r\\nTodo mundo ficou boquiaberto. Uma negra, moradora da Pedreira e filha de pobre\\r\\nou no vestibular.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Ela era foda.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Depois de surpreender a todos, repetiu a dose com uma nova inven\\u0026#231;\\u0026#227;o. Nas\\r\\nfofocas da rua, logo circulou que a menina desistiu de tudo e foi ver o mundo.\\r\\nCansou das rodinhas de amigos, das festinhas americanas e do papo de futuro.\\r\\nProfessora? Ge\\u0026#243;grafa? Acad\\u0026#234;mica? Nada. Cagou pra tudo e foi viver como quis,\\r\\nlonge dali. Viver, enfim, da sua arte. Coragem para viver a vida que escolheu.\\r\\nP\\u0026#233; na estrada, on the road mundo afora, Kerouac. Virou hippie, diziam.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Mas me ensinou a ler antes de partir. As aulas particulares na acanhada sala\\r\\nda casa dela. A cartilha primeiro, aquela da professora branca, do professor branco\\r\\ne das crian\\u0026#231;as brancas na capa. N\\u0026#227;o \\u0026#233;ramos n\\u0026#243;s. Mostrava as letras isoladas em\\r\\num furo improvisado numa folha de caderno e perguntava firme. N\\u0026#227;o havia como\\r\\ndecorar pela ordem. Me for\\u0026#231;ava a aprender pela forma. Assim engoli o alfabeto,\\r\\nas s\\u0026#237;labas e as palavras e tamb\\u0026#233;m, \\u0026#224;s duras penas, a tabuada, com direito a\\r\\ndisputa de bolos com Marquinho, Dezinho e Miriam, meus colegas mais velhos\\r\\ndaquela classe modesta e mal iluminada da professora Lucinha.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;E pensei que daquela min\\u0026#250;scula turma, dos meninos eu era o \\u0026#250;nico ainda vivo –\\r\\nos demais tombaram a tiros - e que tamb\\u0026#233;m andei por a\\u0026#237;, na poeira das ruas,\\r\\ncomo Lucinha, com minhas recusas, minha rebeldia, meus caminhos tortos, minhas\\r\\nescolhas, acumulando palavras desde aquelas primeiras, apreendendo as surpresas\\r\\ne lidando com as reviravoltas, e agora era um homem, solto por a\\u0026#237;, n\\u0026#227;o t\\u0026#227;o\\r\\nlivre quanto ela. \\u0026#201;ramos duas pedras soltas, que se encontraram, finalmente.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Lembra de mim?\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Ela franziu a testa, deu meio sorriso, se demorou me olhando. Sinal de n\\u0026#227;o,\\r\\ncomo eu imaginava.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Quanto tempo, pois \\u0026#233;, quanto tempo.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;-------------------------------\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;Anderson Ara\\u0026#250;jo \\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026#233; escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve \\u0026#224;s sextas.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;A cr\\u0026#244;nica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o \\u0026lt;a href=\\u0026quot;http://daquitescrevo.blog\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Daqui te Escrevo\\u0026lt;/a\\u0026gt;.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;-------------------------------\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;Siga Anderson Ara\\u0026#250;jo no\\u0026lt;a href=\\u0026quot;https://www.instagram.com/daquitescrevo/\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt; Instagram\\u0026lt;/a\\u0026gt; e no \\u0026lt;a href=\\u0026quot;https://twitter.com/daquitescrevo\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Twitter\\u0026lt;/a\\u0026gt;.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;-------------------------------\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;V\\u0026#225; ouvir \\u0026lt;a href=\\u0026quot;https://www.youtube.com/watch?v=mGgMZpGYiy8\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Friday I\\u0026#39;m InLove\\u0026lt;/a\\u0026gt;.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p style=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;","keywords":"coluna do anderson araujo no dol, daqui te escrevo no dol, escritores paraenses, crônicas paraenses, literatura paraense"}
plus
plus

Edição do dia

Leia a edição completa grátis
Edição do Dia
Previsão do Tempo 30°
cotação atual R$


home
DAQUI TE ESCREVO

Antes de abraçar o mundo, Lucinha me ensinou a ler

Crônica desta sexta-feira (15) da coluna Daqui te Escrevo é um eio pela praia com direito a reencontro com Lucinha, a adorável professora que viou artesã.

twitter Google News
Imagem ilustrativa da notícia Antes de abraçar o mundo, Lucinha me ensinou a ler camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Cruzei com ela por aí depois de adulto algumas vezes. Numa dessas, não resisti. Estávamos numa praia, o sol de rachar. Eu, turista. Ela, artista. Altiva, concentrada, miúda, igual como há mais de 30 anos. Os olhos grandes e inteligentes de sempre, o sotaque de mil lugares que andou, as mãos ágeis, os cabelos crespos e curtos já com os vestígios dos anos. Não me percebeu, enquanto arrumava a banquinha e me sorriu como se eu fosse um cliente.

Embaixo de um chapéu e por trás dos óculos de sol disse um oi tímido para voltar no tempo em duas letras. Estávamos em Alter do chão, Santarém. Eu, longe de casa. Ela, em seu habitat, que é qualquer lugar. De agem, ambos.

Lucinha era um orgulho, uma heroína.

Sagaz, audaz, pra frente, vivaz, pura juventude pós-abertura democrática. Promovia festas ruidosas quando dona Maria, a mãe, não estava em casa. O bom e velho rock das bandas daqui e as de fora dos anos 80, vinho barato e a turma. Muito moleque, eu só sabia à distância da rebeldia na Vila Primavera, a duas casas do Beco do Arreia-calça, o rápido para a Alferes Costa.

Quase como uma foto manchada, um vidro embaçado pelo vapor, recordo de uma conversa no quintal dela com duas tias minhas e dois vizinhos. Um cigarro barato aceso, clandestino e subversivo, naquele escuro mal luzindo os papos sobre paqueras, música, escola. Zanzava entre eles, encolhido, como um mascote.

Não demorou, Lucinha entrou na faculdade. Não só uma, mas duas. A primeira não tenho certeza. Talvez fosse um enfadonho curso de istração. A segunda, sim. Era Geografia. Na Universidade Federal do Pará, um lugar que eu nem sonhava onde era. Só sabia que era importante. Parece pouco, porque hoje a educação, ainda que difícil para muitos, já é mais ível. Na para época foi um feito, um matar o gigante com uma baladeira. Todo mundo ficou boquiaberto. Uma negra, moradora da Pedreira e filha de pobre ou no vestibular.

Ela era foda.

Depois de surpreender a todos, repetiu a dose com uma nova invenção. Nas fofocas da rua, logo circulou que a menina desistiu de tudo e foi ver o mundo. Cansou das rodinhas de amigos, das festinhas americanas e do papo de futuro. Professora? Geógrafa? Acadêmica? Nada. Cagou pra tudo e foi viver como quis, longe dali. Viver, enfim, da sua arte. Coragem para viver a vida que escolheu. Pé na estrada, on the road mundo afora, Kerouac. Virou hippie, diziam.

Mas me ensinou a ler antes de partir. As aulas particulares na acanhada sala da casa dela. A cartilha primeiro, aquela da professora branca, do professor branco e das crianças brancas na capa. Não éramos nós. Mostrava as letras isoladas em um furo improvisado numa folha de caderno e perguntava firme. Não havia como decorar pela ordem. Me forçava a aprender pela forma. Assim engoli o alfabeto, as sílabas e as palavras e também, às duras penas, a tabuada, com direito a disputa de bolos com Marquinho, Dezinho e Miriam, meus colegas mais velhos daquela classe modesta e mal iluminada da professora Lucinha.

E pensei que daquela minúscula turma, dos meninos eu era o único ainda vivo – os demais tombaram a tiros - e que também andei por aí, na poeira das ruas, como Lucinha, com minhas recusas, minha rebeldia, meus caminhos tortos, minhas escolhas, acumulando palavras desde aquelas primeiras, apreendendo as surpresas e lidando com as reviravoltas, e agora era um homem, solto por aí, não tão livre quanto ela. Éramos duas pedras soltas, que se encontraram, finalmente.

Lembra de mim?

Ela franziu a testa, deu meio sorriso, se demorou me olhando. Sinal de não, como eu imaginava.

Quanto tempo, pois é, quanto tempo.

-------------------------------

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.

A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

-------------------------------

Siga Anderson Araújo no Instagram e no Twitter.

-------------------------------

Vá ouvir Friday I'm InLove.

VEM SEGUIR OS CANAIS DO DOL!

Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. e: dol-br.noticiasalagoanas.com/n/828815.

tags

Quer receber mais notícias como essa?

Cadastre seu email e comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Conteúdo Relacionado

0 Comentário(s)

plus

    Mais em Anderson Araújo

    Leia mais notícias de Anderson Araújo. Clique aqui!

    Últimas Notícias