{"@context":"https://schema.org","@type":"NewsArticle","mainEntityOfPage":"/entretenimento/cultura/707301/nosferatu-100-anos-e-o-infamiliar-que-em-nos-habita","headline":"Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita.","datePublished":"2022-04-10T13:30:44-03:00","dateModified":"2022-04-10T19:00:43-03:00","author":{"@type":"Person","name":"Relivaldo Pinho (especial para o DOL)","url":"/entretenimento/cultura/707301/nosferatu-100-anos-e-o-infamiliar-que-em-nos-habita"},"image":"/img/Artigo-Destaque/700000/nosferatu-capa_00707301_0_.jpg?xid=1760836","publisher":{"@type":"Organization","name":"DOL","url":"/","logo":"/themes/DOL/img/logoDOL.png","Point":{"@type":"Point","Type":"Customer ","telephone":"+55-91-98412-6477","email":"[email protected]"},"address":{"@type":"PostalAddress","streetAddress":"Rua Gaspar Viana, 773/7","addressLocality":"Belém","addressRegion":"PA","postalCode":"66053-090","addressCountry":"BR"}},"description":"Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita.","articleBody":"\\u0026lt;p\\u0026gt;Antes de mais nada, \\u0026#233; preciso aceitar a tarefa sisifiana de definir, a grosseir\\u0026#237;ssimo modo, essa palavra-conceito, infamiliar [“Das Unheimliche”], tida coma uma das mais complexas da literatura freudiana. Freud toma de Schelling uma cita\\u0026#231;\\u0026#227;o que define o infamiliar como “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio \\u0026#224; tona”. Mas, nessa defini\\u0026#231;\\u0026#227;o, o analista n\\u0026#227;o se limita. Existe, neste texto de Freud, como, de resto, nos demais, uma s\\u0026#233;rie de entrecruzamentos conceituais de sua obra.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O infamiliar torna-se um conceito novo porque re\\u0026#250;ne a caracter\\u0026#237;stica de ser algo que sentimos, ao mesmo tempo, como pertencente a n\\u0026#243;s (familiar), mas que, por v\\u0026#225;rios fatores, recalcamos, e que, em determinado momento, irrompe, transformando-se em infamiliaridade, em algo angustiante. \\u0026#201; um afeto que estava em casa, acomodado, mas, inesperadamente, torna-se, um estranho do mesmo lar.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O exemplo principal de Freud, para exibir sua argumenta\\u0026#231;\\u0026#227;o sobre esse conceito, \\u0026#233; o conto “O Homem da areia” (1815), de E. T. A Hoffmann. No conto, o elemento central, para o te\\u0026#243;rico, \\u0026#233; a figura imaginada de um homem que joga areia nos olhos das crian\\u0026#231;as e os arranca.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nessa narrativa, Nathanael, o rapaz que imagina ver o homem da areia, \\u0026#233; assombrado por sua imagem que ele, posteriormente, identifica como de um advogado, Coppelius, depois com um vendedor de bar\\u0026#244;metros chamado Coppola, que vender\\u0026#225; a Nathanael um mon\\u0026#243;culo. Esse mon\\u0026#243;culo permitir\\u0026#225; a Nathanael olhar para a casa em frente, onde est\\u0026#225; Ol\\u0026#237;mpia, filha de um professor.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;iframe width=\\u0026quot;560\\u0026quot; height=\\u0026quot;315\\u0026quot; src=\\u0026quot;https://www.youtube.com/embed/ZxlJxDr26mM\\u0026quot; title=\\u0026quot;YouTube video player\\u0026quot; frameborder=\\u0026quot;0\\u0026quot; allow=\\u0026quot;accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture\\u0026quot; allowfullscreen=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026lt;/iframe\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;br\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nathanael se apaixona por ela e, s\\u0026#243; depois, perceber\\u0026#225; que ela era um aut\\u0026#244;mato, o que provoca nele uma crise. Recuperado, ele, ent\\u0026#227;o, eia com a noiva que ele havia abandonado. Nesse momento, em uma torre, de repente, nele irrompe uma sensa\\u0026#231;\\u0026#227;o de pavor, e ele v\\u0026#234; Coppola/Coppelius, enlouquece e se atira.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Freud vai demonstrar como essa narrativa ficcional serve como paradigma para a caracteriza\\u0026#231;\\u0026#227;o do infamiliar. Aspectos como a figura do aut\\u0026#244;mato, do eterno retorno, do complexo de castra\\u0026#231;\\u0026#227;o s\\u0026#227;o evocados na an\\u0026#225;lise freudiana.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;N\\u0026#227;o cabe aqui fazer uma reconstitui\\u0026#231;\\u0026#227;o desse dif\\u0026#237;cil trajeto. Mas as conclus\\u0026#245;es freudianas caminham para a compreens\\u0026#227;o de que o personagem Nathanael projetaria nas figuras do homem da areia, do advogado e do vendedor, alguns de seus recalques infantis, especialmente em rela\\u0026#231;\\u0026#227;o ao elemento paterno, da\\u0026#237; podermos entender a ideia do duplo (Coppelius/Coppola), do complexo de castra\\u0026#231;\\u0026#227;o, representado no ato de arrancar os olhos, e do aut\\u0026#244;mato, seres inanimados que ganham “vida”.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;As manifesta\\u0026#231;\\u0026#245;es da psicose de Nathanael, ent\\u0026#227;o, n\\u0026#227;o s\\u0026#227;o externas a ele, elas j\\u0026#225; estavam dispostas em sua inf\\u0026#226;ncia, em seu lar, mas, se antes, ainda guardavam uma familiaridade, com o advento fantasm\\u0026#225;tico da realidade, elas se transformar\\u0026#227;o, porque recalcadas, em sua infamiliaridade.\\u0026amp;nbsp;\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026#201; evidente, repito, que a an\\u0026#225;lise freudiana do “Das Unheimliche”, de modo algum, se resume a esses aspectos. O que quero chamar aten\\u0026#231;\\u0026#227;o – e precisei fazer esse resumido p\\u0026#233;riplo para tal – \\u0026#233; de como esse elemento infamiliar, partindo da senda de Freud, nos ajuda pensar “Nosferatu” e nossa contempor\\u0026#226;nea infamiliaridade que, se n\\u0026#227;o morde pesco\\u0026#231;os, atinge, como o vampiro aterrorizante, decisivamente, nosso Eu.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O primeiro contato de Nosferatu com a esposa de Hutter \\u0026#233; atrav\\u0026#233;s de uma fotografia dela, que seu marido portava quando visitou o Castelo do Conde/vampiro. Ao ver a imagem, o Conde fica fascinado e ele, ent\\u0026#227;o, decide comprar a casa que Hutter, um agente imobili\\u0026#225;rio, foi lhe oferecer, “a bela casa abandonada em frente \\u0026#224; sua”, diz Nosferatu ao agente.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O vampiro se tornar\\u0026#225; seu vizinho, como os medos que guardamos pr\\u0026#243;ximos a n\\u0026#243;s, e que, mesmo que n\\u0026#227;o desejemos, v\\u0026#234;m \\u0026#224; tona. A fotografia de Ellen, a esposa, \\u0026#233; a abertura para a chegada do (des)conhecido, aquele que nos habita e que, ao mesmo tempo, estranhamos, o infamiliar.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;\\u0026lt;a href=\\u0026quot;/entretenimento/cultura/691974/belem-sonhos-de-ado-sonhos-de-futuro?d=1\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Bel\\u0026#233;m, sonhos de ado, sonhos de futuro\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;\\u0026lt;a href=\\u0026quot;/entretenimento/cultura/658188/vicente-cecim-e-o-cinema-da-acao-transcendente?d=1\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Vicente Cecim e o cinema da a\\u0026#231;\\u0026#227;o transcendente\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;N\\u0026#227;o deixa de ser curioso que Kracauer em seu livro, “De Caligari a Hitler: uma hist\\u0026#243;ria psicol\\u0026#243;gica do cinema alem\\u0026#227;o” (1988), afirma que a cr\\u0026#237;tica \\u0026#224; “Nosferatu” \\u0026#224; \\u0026#233;poca n\\u0026#227;o deixava de relacion\\u0026#225;-lo a E.T.A Hoffmann. Exatamente o autor central a ser tomado como exemplo do infamiliar por Freud.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Kracauer, pela sua leitura pol\\u0026#237;tica, identifica a imagem do vampiro, predominantemente, como uma figura tir\\u0026#226;nica, “aparecendo onde mitos e contos de fadas se encontram”. Mas Kracauer n\\u0026#227;o percebeu a dimens\\u0026#227;o ontol\\u0026#243;gica, metaf\\u0026#237;sica, explorada pela certeira cr\\u0026#237;tica de Jean Domarchi sobre Murnau e seu filme, escrita no Cahiers du cin\\u0026#233;ma, em 1953.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Em “Presen\\u0026#231;a de F.W Murnau”, Domarchi diz: “\\u0026#233; plaus\\u0026#237;vel que a t\\u0026#233;cnica de Murnau no cinema corresponda \\u0026#224; de Kafka no romance, pois a principal inten\\u0026#231;\\u0026#227;o que os conduz \\u0026#233; a mesma em ambos os casos; ela diz respeito ao tr\\u0026#225;gico da exist\\u0026#234;ncia. O mundo, como diz K. Jaspers, \\u0026#233; um espelho quebrado, e, neste mundo, a verdade e a paz do cora\\u0026#231;\\u0026#227;o s\\u0026#227;o in\\u0026#237;veis. ‘Nosferatu’ j\\u0026#225; havia antecipado, de um modo ainda mais ‘aned\\u0026#243;tico’, essa constata\\u0026#231;\\u0026#227;o. O verdadeiro tema deste filme n\\u0026#227;o \\u0026#233;, como se poderia supor, uma lenda tirada de uma cole\\u0026#231;\\u0026#227;o demonol\\u0026#243;gica, mas a “metamorfose” de um universo provincial e burgu\\u0026#234;s dos anos 1830, em um mundo habitado pela morte e pela devasta\\u0026#231;\\u0026#227;o”.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O que Domarchi est\\u0026#225; enfatizando \\u0026#233; que o cinema de Murnau, possui uma “vis\\u0026#227;o [que] \\u0026#233; inexoravelmente pessimista; o mundo aqui \\u0026#233; ris\\u0026#237;vel e grotesco; o outro, implac\\u0026#225;vel e aterrorizante. Pactuar com ele para escapar das restri\\u0026#231;\\u0026#245;es in\\u0026#225;veis da vida burguesa – cuja mediocridade nenhuma alma generosa e alegre poderia itir – \\u0026#233; brincar de aprendiz de feiticeiro e conter a tempestade”. (Tradu\\u0026#231;\\u0026#227;o: Miguel Fernandes).\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026#201; o que justifica a presen\\u0026#231;a desse outro que pertence ao submundo, mas esse outro \\u0026#233; “evocado” pela pr\\u0026#243;pria vida mundana. Tem-se a impress\\u0026#227;o de que, de algum modo, (in)voluntariamente, o casal que vivia feliz, \\u0026#233; o anfitri\\u0026#227;o do terror, de sua pr\\u0026#243;pria ang\\u0026#250;stia.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nosferatu \\u0026#233; esse outro, esse duplo da vida que se irrompe dentro dessa familiaridade restrita e in\\u0026#225;vel e, por isso, surge, ao mesmo tempo, no interior da cidade, sendo t\\u0026#227;o distante dela. Infamiliar.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Lembremos que \\u0026#233; Hutter quem vai ao encontro do Conde; recordemos que o vampiro, ao chegar \\u0026#224; cidade onde se instalar\\u0026#225;, nada se lhe op\\u0026#245;e, ele caminha pelas ruas segurando seu caix\\u0026#227;o que contem a necess\\u0026#225;ria terra (\\u0026#233; o que lhe garante a vida e o poder) de seu lugar de origem e se instala como um habitante qualquer. Nesse l\\u0026#243;cus, o terror \\u0026#233; um estrangeiro que sempre possuiu sua morada.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;N\\u0026#227;o esque\\u0026#231;amos que Ellen, em uma das sequ\\u0026#234;ncias finais, enquanto o marido dorme, possu\\u0026#237;da pelo medo/desejo, tenta resistir, compulsivamente, a abrir a janela do quarto para olhar para a casa em frente onde o Conde se instalara, mas n\\u0026#227;o consegue.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Ao abrir a janela, ela consuma a abertura para o outro, para aquele que \\u0026#233; seu vizinho, e, tamb\\u0026#233;m, abre as portas para si, para sua ang\\u0026#250;stia.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026#201; imposs\\u0026#237;vel desconsiderar, dentre tantas afinidades, a cl\\u0026#225;ssica cena final na qual a sombra do vampiro se projeta nas paredes, enquanto ele sobe as escadas, com o pavor sentido pelo Nathanael, de Hoffmann, toda vez que, ao se deitar, o menino ouvia os os do homem da areia subindo as escadas em dire\\u0026#231;\\u0026#227;o ao escrit\\u0026#243;rio do pai.\\u0026amp;nbsp;\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Logo na primeira p\\u0026#225;gina do conto de Hoffmann, Nathanael, em uma carta ao seu amigo, descreve sua situa\\u0026#231;\\u0026#227;o de ang\\u0026#250;stia: “uma coisa terr\\u0026#237;vel aconteceu na minha vida! Pressentimentos sombrios de um destino horroroso e amea\\u0026#231;ador se espalham sobre mim como sombras de nuvens negras, impenetr\\u0026#225;veis a qualquer apraz\\u0026#237;vel raio de sol”. (O Homem da areia, em “O infamiliar”, Freud, Aut\\u0026#234;ntica, 2019)\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Em “Nosferatu”, o vampiro realiza seu desejo com Ellen. O destino horroroso se consumou. Mas, se em Hoffmann, Nathanael n\\u0026#227;o v\\u0026#234; nenhuma possibilidade de um raio de sol que dissipe seu sentimento, em Nosfetratu o galo canta, o sol se levanta e o vampiro desaparece. A peste que, com ele chegou, se esvai. O convidado (in)desejado, o infamiliar, por agora, se foi.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p class=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026amp;nbsp;\\r\\n\\t\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n \\u0026lt;figure class=\\u0026quot;dol-img-article\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\u0026lt;img loading=\\u0026quot;lazy\\u0026quot; class=\\u0026quot;lozad desk\\u0026quot; alt=\\u0026quot;Greta Schr\\u0026amp;#246;der, a Ellen, esposa de Hutter.\\u0026quot; data-src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/ellen_00707301_0_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2Fellen_00707301_0_.jpg%3Fxid%3D1760838%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760838\\u0026quot; src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/ellen_00707301_0_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2Fellen_00707301_0_.jpg%3Fxid%3D1760838%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760838\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n \\r\\n \\u0026lt;figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;span\\u0026gt;\\u0026#128247; Greta Schr\\u0026amp;#246;der, a Ellen, esposa de Hutter. |\\u0026lt;/span\\u0026gt;\\u0026lt;strong\\u0026gt;Frame de Nosferatu\\u0026lt;/strong\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figure\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Mas, no plano final do filme, Ellen, desfalece, o marido tenta reanim\\u0026#225;-la em v\\u0026#227;o, enquanto o m\\u0026#233;dico, na porta do quarto, abaixa a cabe\\u0026#231;a, desconsolado.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;br\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;A premoni\\u0026#231;\\u0026#227;o de um ante, que surge logo no in\\u0026#237;cio do filme, oestando Hutter, que caminhava feliz para o trabalho, se concretiza: “n\\u0026#227;o tenha pressa meu jovem amigo, ningu\\u0026#233;m escapa do pr\\u0026#243;prio destino”.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Convido o leitor a saltar 50 anos, \\u0026#224; frente, no tempo.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;O filme \\u0026#233; “Solaris” (1972), de Andrei Tarkovsky.\\u0026amp;nbsp; Kris, o protagonista, \\u0026#233; um psiquiatra encarregado de uma miss\\u0026#227;o no espa\\u0026#231;o. J\\u0026#225; na esta\\u0026#231;\\u0026#227;o espacial, ele se depara (por motivos que aqui n\\u0026#227;o cabe explicar, e cin\\u0026#233;filos – sic – talvez dissessem ser uma heresia tentar faz\\u0026#234;-lo) com um simulacro de sua esposa Haria, morta h\\u0026#225; tempos.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Ela encontra uma fotografia sua, na mala de Kris. Diante de um espelho, ela, revezando, olha para o espelho e para a fotografia (novamente a fotografia, a imagem) e, ent\\u0026#227;o, vira-se para o ex-marido e lhe diz: “Kris, esta sou eu...”.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Kris, angustiado, levanta-se da cama, e Haria lhe confessa: “sabe, eu tenho essa sensa\\u0026#231;\\u0026#227;o... como se estivesse esquecido algo”. Aflita, ela pergunta: “qual \\u0026#233; o problema comigo?”.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nesse caso, um certo infamiliar \\u0026#233; desencadeado em Kris, mesmo que as d\\u0026#250;vidas que suscitam esses questionamentos, sejam proferidas pela esposa.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p class=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026amp;nbsp;\\r\\n\\t\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n \\u0026lt;figure class=\\u0026quot;dol-img-article\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\u0026lt;img loading=\\u0026quot;lazy\\u0026quot; class=\\u0026quot;lozad desk\\u0026quot; alt=\\u0026quot;“Solaris”, filme de 1972 de Andrei Tarkovsky.\\u0026quot; data-src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/Solaris_00707301_1_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2FSolaris_00707301_1_.jpg%3Fxid%3D1760839%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760839\\u0026quot; src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/Solaris_00707301_1_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2FSolaris_00707301_1_.jpg%3Fxid%3D1760839%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760839\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n \\r\\n \\u0026lt;figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;span\\u0026gt;\\u0026#128247; “Solaris”, filme de 1972 de Andrei Tarkovsky. |\\u0026lt;/span\\u0026gt;\\u0026lt;strong\\u0026gt;Frame de Solaris\\u0026lt;/strong\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figure\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;br\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026#201; ele quem realmente duvida se aquela \\u0026#233; sua esposa, exatamente porque, essa d\\u0026#250;vida provocada pela duplicidade da pessoa amada, faz surgir nele um fasc\\u0026#237;nio, um medo e uma ang\\u0026#250;stia.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Kris, projeta seu desejo e ele se realiza como vida e morte. A cada tentativa de salv\\u0026#225;-la, ela morre novamente e, na proje\\u0026#231;\\u0026#227;o compulsiva de Kris, ela sempre reaparece, para morrer.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026#201; a ideia de que os mortos, pela vontade onipotente dos que os amaram, podem voltar. E \\u0026#233;, tamb\\u0026#233;m, a ideia do duplo e da compuls\\u0026#227;o do eterno retorno, t\\u0026#227;o caras para a an\\u0026#225;lise freudiana. S\\u0026#227;o, como vimos no filme anterior, sentimento ancestrais, m\\u0026#237;ticos, pr\\u0026#243;prios da alma e, ao mesmo tempo, contempor\\u0026#226;neos.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Contempor\\u0026#226;neos porque “Solaris” serve como uma met\\u0026#225;fora das nossas representa\\u0026#231;\\u0026#245;es especulares, de espelhos, artefatos eletr\\u0026#244;nicos e reprodu\\u0026#231;\\u0026#245;es, mas, tamb\\u0026#233;m, de uma percep\\u0026#231;\\u0026#227;o que se desenvolve cada vez mais por simulacros, reprodu\\u0026#231;\\u0026#227;o e duplica\\u0026#231;\\u0026#227;o, que tende a perder a no\\u0026#231;\\u0026#227;o do tempo, da hist\\u0026#243;ria e, em \\u0026#250;ltima inst\\u0026#226;ncia, de si mesmo. Nesse caso, Hari, como Kris, s\\u0026#227;o tanto o vetor do estranho-familiar que n\\u0026#227;o se (re)conhece, como seu objeto.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nesse \\u0026#226;mbito do contempor\\u0026#226;neo que aludimos com “Solaris”, aqui, eu permito-me me apropriar da trilha deixada por Ernani Chaves, tradutor do texto de Freud e comentador da sua obra, em seu ensaio, “Perder-se em algo que parece plano” (em O infamiliar, aut\\u0026#234;ntica, 2019).\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Situando o conto de Hoffman e a leitura que Freud empreende desse texto no contexto das novas mudan\\u0026#231;as tecnol\\u0026#243;gicas, como a fotografia e o cinema, Chaves afirma: “tal aproxima\\u0026#231;\\u0026#227;o entre o mundo do ‘infamiliar’ e as formas contempor\\u0026#226;neas de produ\\u0026#231;\\u0026#227;o de imagens – hoje levadas a um extremo que Freud e seus contempor\\u0026#226;neos n\\u0026#227;o poderiam sequer imaginar – n\\u0026#227;o \\u0026#233; descabida, se pensarmos, por exemplo, na explora\\u0026#231;\\u0026#227;o “ad infinitum”, nos filmes e nas s\\u0026#233;ries de televis\\u0026#227;o, das figuras dos mortos-vivos, zumbis, vampiros e fantasmas. As formas rom\\u0026#226;nticas do ‘infamiliar’, longe de terem desaparecido, continuam absolutamente presentes no nosso mundo midiatizado e fascinado pelas imagens”.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p class=\\u0026quot;\\u0026quot;\\u0026gt;\\u0026amp;nbsp;\\r\\n\\t\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n\\r\\n \\r\\n\\r\\n\\r\\n \\u0026lt;figure class=\\u0026quot;dol-img-article\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\r\\n \\u0026lt;img loading=\\u0026quot;lazy\\u0026quot; class=\\u0026quot;lozad desk\\u0026quot; alt=\\u0026quot;Max Schreck interpretando Conde Orlok em Nosferatu.\\u0026quot; data-src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/nosferatu-frame_00707301_2_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2Fnosferatu-frame_00707301_2_.jpg%3Fxid%3D1760840%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760840\\u0026quot; src=\\u0026quot;https://cdn.dol-br.noticiasalagoanas.com/img/inline/700000/767x0/nosferatu-frame_00707301_2_.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.dol-br.noticiasalagoanas.com%2Fimg%2Finline%2F700000%2Fnosferatu-frame_00707301_2_.jpg%3Fxid%3D1760840%26resize%3D380%252C200%26t%3D1748643253\\u0026amp;amp;xid=1760840\\u0026quot;\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n \\r\\n \\u0026lt;figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;span\\u0026gt;\\u0026#128247; Max Schreck interpretando Conde Orlok em Nosferatu. |\\u0026lt;/span\\u0026gt;\\u0026lt;strong\\u0026gt;Frame de Nosferatu\\u0026lt;/strong\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figcaption\\u0026gt;\\r\\n \\u0026lt;/figure\\u0026gt;\\r\\n\\r\\n\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Sim. Continuam presentes gra\\u0026#231;as, exatamente, a esses novos aparatos t\\u0026#233;cnicos, mas esses aparatos fazem parte de um esp\\u0026#237;rito. Uma disposi\\u0026#231;\\u0026#227;o contempor\\u0026#226;nea n\\u0026#227;o s\\u0026#243; pelo grotesco ou pelo terr\\u0026#237;fico dos filmes, mas, fundamentalmente, pela possibilidade de termos de lidar com as imagens que deles irrompem e que n\\u0026#243;s fazemos quest\\u0026#227;o de contemplar, ignorar e esquecer.\\u0026lt;br\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Quantas fotos de n\\u0026#243;s mesmos, repetidas e, principalmente, “duplicadas”, temos em nossos aparatos eletr\\u0026#244;nicos? Exibimos nosso cotidiano, nossos afazeres, fam\\u0026#237;lia e gostos.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nessa compulsiva exibi\\u0026#231;\\u0026#227;o, tratamos sempre de mostrar, mecanicamente, o que n\\u0026#243;s “ser\\u0026#237;amos” e ocultamos aquilo que nos desagrada, ou que, julgamos, ao outro ir\\u0026#225; desagradar e, ent\\u0026#227;o, ampliamos o filtro da proje\\u0026#231;\\u0026#227;o encantat\\u0026#243;ria.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Nessas representa\\u0026#231;\\u0026#245;es, talvez estejamos evitando que, n\\u0026#227;o apenas uma certa realidade venha \\u0026#224; tona, mas que a reprodu\\u0026#231;\\u0026#227;o, manchada de viv\\u0026#234;ncia, se manifeste. Nessa dial\\u0026#233;tica pr\\u0026#243;pria da fantasia, tendemos a ocultar ao que a n\\u0026#243;s, indelevelmente, pertence.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Na imagem, o que se quer mostrar n\\u0026#227;o \\u0026#233; a mera duplica\\u0026#231;\\u0026#227;o da viv\\u0026#234;ncia, mas outro duplo, o duplo que nos agrade e que n\\u0026#227;o nos incomode. Compulsivamente, repetimos um eterno retorno psic\\u0026#243;tico, por isso repleto de fantasia, dessa contempor\\u0026#226;nea viv\\u0026#234;ncia.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;No limite, a imagem de n\\u0026#243;s mesmos, sem os aparatos eletr\\u0026#244;nicos, parece, agora, guardar algo irrepresent\\u0026#225;vel, demasiadamente pr\\u0026#243;ximo de n\\u0026#243;s e, ao mesmo tempo, inevitavelmente estranho, distante e, em certo sentido, angustiante.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Realismo demais de n\\u0026#243;s mesmos n\\u0026#227;o \\u0026#233; algo bem-vindo, \\u0026#233; demasiadamente cru e a realidade parece ser sempre a mesma e cruel demais.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Em “Nosferatu”, o medo, a ang\\u0026#250;stia, surgem do entrecruzamento de mundos que pareciam separados, a cidade e o castelo, a vida mundana e uma regi\\u0026#227;o na escurid\\u0026#227;o. Nas compuls\\u0026#245;es imag\\u0026#233;ticas contempor\\u0026#226;neas, j\\u0026#225; n\\u0026#227;o se pode mais separar mundos.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;\\u0026lt;a href=\\u0026quot;/entretenimento/cultura/598349/beethoven-250-anos-egmont-e-fidelio-contra-a-tirania?d=1\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Beethoven 250 anos: Egmont e Fidelio contra a tirania\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;\\u0026lt;a href=\\u0026quot;/noticias/para/530495/a-italia-e-um-pub-na-amazonia?d=1\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;A It\\u0026#225;lia e um Pub na Amaz\\u0026#244;nia\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;E n\\u0026#227;o porque eles convivem em uma sin\\u0026#233;rgica harmonia, mas porque sua separa\\u0026#231;\\u0026#227;o, agora, pode ser realizada tecnicamente. O mundo da casa e da rua, separados, para esse “artificial” corte, n\\u0026#227;o apenas n\\u0026#227;o existem mais, mas est\\u0026#227;o totalmente encavalados, sobrepostos, montados.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Estamos em outros tipos de rituais. Colocamos o mon\\u0026#243;culo de Coppola e uma certa histeria de n\\u0026#243;s se apossa. “Ajeite esse fundo, ele est\\u0026#225; destoando do conjunto da imagem!”.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Um tipo de reprodu\\u0026#231;\\u0026#227;o recalcada que, com o filtro, em s\\u0026#233;pia, procura arrumar uma mesa como se fosse um banquete, sem revelar o alimento da alma desalinhado.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Em “Solaris”, Haria afirma ter a sensa\\u0026#231;\\u0026#227;o de que esqueceu algo. Kris, seu esposo, sabe que ela n\\u0026#227;o pode lembrar porque ela \\u0026#233; uma simula\\u0026#231;\\u0026#227;o instant\\u0026#226;nea, que n\\u0026#227;o pode reconstituir toda a experi\\u0026#234;ncia anteriormente vivida.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;A ang\\u0026#250;stia do marido adv\\u0026#233;m dessa condi\\u0026#231;\\u0026#227;o, mas seu sentimento pela esposa, adormecido (semelhante \\u0026#224; possess\\u0026#227;o de Ellen pelo Vampiro), compulsivo, ignora essa realidade em prol de um \\u0026#225;timo de amor simulacional, que diante dele pergunta: “voc\\u0026#234; me ama?”\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;N\\u0026#227;o seria, de certo modo, o mesmo proceder que desenvolvemos diante de nossa contemporaneidade tecnificante? 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A hecatombe de jovens precocemente ceifados pareceu alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes haviam povoado o romantismo alem\\u0026#227;o, se reanimavam tal como as sombras de Hades ao beberem sangue”. (Eisner 1985, citado por Can\\u0026#233;pa, “Expressionismo alem\\u0026#227;o”, 2006), nosso expressionismo contempor\\u0026#226;neo imag\\u0026#233;tico edita, na palma da m\\u0026#227;o, um rosto, ou uma paisagem, sem a “feiura” de sua realidade. Velando pelo esquecimento e adornando a dor e a morte.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Reproduzimos, duplicamos, filtramos, editamos. Se isso pode revelar uma atitude que ignora o infamiliar que nos \\u0026#233; pr\\u0026#243;prio, isso n\\u0026#227;o quer dizer que esse ignorar gere sempre um tipo de desconforto, ang\\u0026#250;stia, no processo de percep\\u0026#231;\\u0026#227;o de n\\u0026#243;s mesmos.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;A express\\u0026#227;o jocosa que compara duas imagens, uma sem a utiliza\\u0026#231;\\u0026#227;o da t\\u0026#233;cnica e outra na qual ela foi utilizada (“Na internet/ Na vida real”), \\u0026#233; um chiste sintom\\u0026#225;tico desse sentimento, desse esp\\u0026#237;rito. A aceita\\u0026#231;\\u0026#227;o angustiante de Kris diante da simulada esposa n\\u0026#227;o nos \\u0026#233; estranha.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Talvez, nesse sentido, a grande mudan\\u0026#231;a contempor\\u0026#226;nea desse aspecto seria, ao ignorar esse infamiliar que em n\\u0026#243;s habita, recalcar esses medos, essas ang\\u0026#250;stias, gerando, posteriormente, um desencadeamento doloroso do Eu.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Agora, talvez, o afeto que estava em casa, acomodado, pela tecnicidade contempor\\u0026#226;nea, l\\u0026#225; deve permanecer, e n\\u0026#227;o se quer que, inesperadamente, ele torne-se um estranho do mesmo lar.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Uma infamiliaridade controlada.\\u0026amp;nbsp; Mas sabemos que o infamiliar \\u0026#233; sempre um h\\u0026#243;spede fiel, seja em uma vila do S\\u0026#233;culo XIX, seja em uma esta\\u0026#231;\\u0026#227;o espacial do futuro, seja na tela para qual olhamos, compulsivamente, em busca de n\\u0026#243;s mesmos.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;A plaqueta que inicia “Nosferatu” diz: “Cuidado para n\\u0026#227;o dizer a palavra [Nosferatu] sen\\u0026#227;o as imagens da vida se transformar\\u0026#227;o em sombras”.\\u0026amp;nbsp;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;Na contemporaneidade, reproduz-se e duplica-se a realidade para, em muitos casos, construirmos a sensa\\u0026#231;\\u0026#227;o de que, de nossos cora\\u0026#231;\\u0026#245;es imag\\u0026#233;ticos, jamais saiam, com sombras, as imagens da vida que n\\u0026#227;o possam ser tecnicamente modificadas. N\\u0026#227;o podemos ter a sensa\\u0026#231;\\u0026#227;o de que aquilo que deveria permanecer oculto, venha \\u0026#224; tona.\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;i\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;Esse texto teve a honrosa consultoria de \\u0026lt;a href=\\u0026quot;https://www.instagram.com/ernanipinheirochaves/\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Ernani Chaves.\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/i\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;\\u0026lt;p\\u0026gt;\\u0026lt;i\\u0026gt;\\u0026lt;b\\u0026gt;\\u0026lt;a href=\\u0026quot;https://www.instagram.com/relivaldopinho/\\u0026quot; target=\\u0026quot;_blank\\u0026quot;\\u0026gt;Relivaldo Pinho \\u0026#233; autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experi\\u0026#234;ncia e est\\u0026#233;tica na literatura e no cinema da Amaz\\u0026#244;nia”, ed. ufpa.\\u0026lt;/a\\u0026gt;\\u0026lt;/b\\u0026gt;\\u0026lt;/i\\u0026gt;\\u0026lt;/p\\u0026gt;","keywords":"Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita."}
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Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita.

Leia o texto especial para o DOL, de autoria do professor e pesquisador Relivaldo Pinho.

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Imagem ilustrativa da notícia Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita. camera Nosferatu completa 100 anos em 2022. | Frame de Nosferatu

Antes de mais nada, é preciso aceitar a tarefa sisifiana de definir, a grosseiríssimo modo, essa palavra-conceito, infamiliar [“Das Unheimliche”], tida coma uma das mais complexas da literatura freudiana. Freud toma de Schelling uma citação que define o infamiliar como “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona”. Mas, nessa definição, o analista não se limita. Existe, neste texto de Freud, como, de resto, nos demais, uma série de entrecruzamentos conceituais de sua obra.

O infamiliar torna-se um conceito novo porque reúne a característica de ser algo que sentimos, ao mesmo tempo, como pertencente a nós (familiar), mas que, por vários fatores, recalcamos, e que, em determinado momento, irrompe, transformando-se em infamiliaridade, em algo angustiante. É um afeto que estava em casa, acomodado, mas, inesperadamente, torna-se, um estranho do mesmo lar.

O exemplo principal de Freud, para exibir sua argumentação sobre esse conceito, é o conto “O Homem da areia” (1815), de E. T. A Hoffmann. No conto, o elemento central, para o teórico, é a figura imaginada de um homem que joga areia nos olhos das crianças e os arranca.

Nessa narrativa, Nathanael, o rapaz que imagina ver o homem da areia, é assombrado por sua imagem que ele, posteriormente, identifica como de um advogado, Coppelius, depois com um vendedor de barômetros chamado Coppola, que venderá a Nathanael um monóculo. Esse monóculo permitirá a Nathanael olhar para a casa em frente, onde está Olímpia, filha de um professor.

Nathanael se apaixona por ela e, só depois, perceberá que ela era um autômato, o que provoca nele uma crise. Recuperado, ele, então, eia com a noiva que ele havia abandonado. Nesse momento, em uma torre, de repente, nele irrompe uma sensação de pavor, e ele vê Coppola/Coppelius, enlouquece e se atira.

Freud vai demonstrar como essa narrativa ficcional serve como paradigma para a caracterização do infamiliar. Aspectos como a figura do autômato, do eterno retorno, do complexo de castração são evocados na análise freudiana.

Não cabe aqui fazer uma reconstituição desse difícil trajeto. Mas as conclusões freudianas caminham para a compreensão de que o personagem Nathanael projetaria nas figuras do homem da areia, do advogado e do vendedor, alguns de seus recalques infantis, especialmente em relação ao elemento paterno, daí podermos entender a ideia do duplo (Coppelius/Coppola), do complexo de castração, representado no ato de arrancar os olhos, e do autômato, seres inanimados que ganham “vida”.

As manifestações da psicose de Nathanael, então, não são externas a ele, elas já estavam dispostas em sua infância, em seu lar, mas, se antes, ainda guardavam uma familiaridade, com o advento fantasmático da realidade, elas se transformarão, porque recalcadas, em sua infamiliaridade.

É evidente, repito, que a análise freudiana do “Das Unheimliche”, de modo algum, se resume a esses aspectos. O que quero chamar atenção – e precisei fazer esse resumido périplo para tal – é de como esse elemento infamiliar, partindo da senda de Freud, nos ajuda pensar “Nosferatu” e nossa contemporânea infamiliaridade que, se não morde pescoços, atinge, como o vampiro aterrorizante, decisivamente, nosso Eu.

O primeiro contato de Nosferatu com a esposa de Hutter é através de uma fotografia dela, que seu marido portava quando visitou o Castelo do Conde/vampiro. Ao ver a imagem, o Conde fica fascinado e ele, então, decide comprar a casa que Hutter, um agente imobiliário, foi lhe oferecer, “a bela casa abandonada em frente à sua”, diz Nosferatu ao agente.

O vampiro se tornará seu vizinho, como os medos que guardamos próximos a nós, e que, mesmo que não desejemos, vêm à tona. A fotografia de Ellen, a esposa, é a abertura para a chegada do (des)conhecido, aquele que nos habita e que, ao mesmo tempo, estranhamos, o infamiliar.

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Não deixa de ser curioso que Kracauer em seu livro, “De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão” (1988), afirma que a crítica à “Nosferatu” à época não deixava de relacioná-lo a E.T.A Hoffmann. Exatamente o autor central a ser tomado como exemplo do infamiliar por Freud.

Kracauer, pela sua leitura política, identifica a imagem do vampiro, predominantemente, como uma figura tirânica, “aparecendo onde mitos e contos de fadas se encontram”. Mas Kracauer não percebeu a dimensão ontológica, metafísica, explorada pela certeira crítica de Jean Domarchi sobre Murnau e seu filme, escrita no Cahiers du cinéma, em 1953.

Em “Presença de F.W Murnau”, Domarchi diz: “é plausível que a técnica de Murnau no cinema corresponda à de Kafka no romance, pois a principal intenção que os conduz é a mesma em ambos os casos; ela diz respeito ao trágico da existência. O mundo, como diz K. Jaspers, é um espelho quebrado, e, neste mundo, a verdade e a paz do coração são iníveis. ‘Nosferatu’ já havia antecipado, de um modo ainda mais ‘anedótico’, essa constatação. O verdadeiro tema deste filme não é, como se poderia supor, uma lenda tirada de uma coleção demonológica, mas a “metamorfose” de um universo provincial e burguês dos anos 1830, em um mundo habitado pela morte e pela devastação”.

O que Domarchi está enfatizando é que o cinema de Murnau, possui uma “visão [que] é inexoravelmente pessimista; o mundo aqui é risível e grotesco; o outro, implacável e aterrorizante. Pactuar com ele para escapar das restrições ináveis da vida burguesa – cuja mediocridade nenhuma alma generosa e alegre poderia itir – é brincar de aprendiz de feiticeiro e conter a tempestade”. (Tradução: Miguel Fernandes).

É o que justifica a presença desse outro que pertence ao submundo, mas esse outro é “evocado” pela própria vida mundana. Tem-se a impressão de que, de algum modo, (in)voluntariamente, o casal que vivia feliz, é o anfitrião do terror, de sua própria angústia.

Nosferatu é esse outro, esse duplo da vida que se irrompe dentro dessa familiaridade restrita e inável e, por isso, surge, ao mesmo tempo, no interior da cidade, sendo tão distante dela. Infamiliar.

Lembremos que é Hutter quem vai ao encontro do Conde; recordemos que o vampiro, ao chegar à cidade onde se instalará, nada se lhe opõe, ele caminha pelas ruas segurando seu caixão que contem a necessária terra (é o que lhe garante a vida e o poder) de seu lugar de origem e se instala como um habitante qualquer. Nesse lócus, o terror é um estrangeiro que sempre possuiu sua morada.

Não esqueçamos que Ellen, em uma das sequências finais, enquanto o marido dorme, possuída pelo medo/desejo, tenta resistir, compulsivamente, a abrir a janela do quarto para olhar para a casa em frente onde o Conde se instalara, mas não consegue.

Ao abrir a janela, ela consuma a abertura para o outro, para aquele que é seu vizinho, e, também, abre as portas para si, para sua angústia.

É impossível desconsiderar, dentre tantas afinidades, a clássica cena final na qual a sombra do vampiro se projeta nas paredes, enquanto ele sobe as escadas, com o pavor sentido pelo Nathanael, de Hoffmann, toda vez que, ao se deitar, o menino ouvia os os do homem da areia subindo as escadas em direção ao escritório do pai.

Logo na primeira página do conto de Hoffmann, Nathanael, em uma carta ao seu amigo, descreve sua situação de angústia: “uma coisa terrível aconteceu na minha vida! Pressentimentos sombrios de um destino horroroso e ameaçador se espalham sobre mim como sombras de nuvens negras, impenetráveis a qualquer aprazível raio de sol”. (O Homem da areia, em “O infamiliar”, Freud, Autêntica, 2019)

Em “Nosferatu”, o vampiro realiza seu desejo com Ellen. O destino horroroso se consumou. Mas, se em Hoffmann, Nathanael não vê nenhuma possibilidade de um raio de sol que dissipe seu sentimento, em Nosfetratu o galo canta, o sol se levanta e o vampiro desaparece. A peste que, com ele chegou, se esvai. O convidado (in)desejado, o infamiliar, por agora, se foi.

Greta Schröder, a Ellen, esposa de Hutter.
📷 Greta Schröder, a Ellen, esposa de Hutter. |Frame de Nosferatu

Mas, no plano final do filme, Ellen, desfalece, o marido tenta reanimá-la em vão, enquanto o médico, na porta do quarto, abaixa a cabeça, desconsolado.

A premonição de um ante, que surge logo no início do filme, oestando Hutter, que caminhava feliz para o trabalho, se concretiza: “não tenha pressa meu jovem amigo, ninguém escapa do próprio destino”.

Convido o leitor a saltar 50 anos, à frente, no tempo.

O filme é “Solaris” (1972), de Andrei Tarkovsky. Kris, o protagonista, é um psiquiatra encarregado de uma missão no espaço. Já na estação espacial, ele se depara (por motivos que aqui não cabe explicar, e cinéfilos – sic – talvez dissessem ser uma heresia tentar fazê-lo) com um simulacro de sua esposa Haria, morta há tempos.

Ela encontra uma fotografia sua, na mala de Kris. Diante de um espelho, ela, revezando, olha para o espelho e para a fotografia (novamente a fotografia, a imagem) e, então, vira-se para o ex-marido e lhe diz: “Kris, esta sou eu...”.

Kris, angustiado, levanta-se da cama, e Haria lhe confessa: “sabe, eu tenho essa sensação... como se estivesse esquecido algo”. Aflita, ela pergunta: “qual é o problema comigo?”.

Nesse caso, um certo infamiliar é desencadeado em Kris, mesmo que as dúvidas que suscitam esses questionamentos, sejam proferidas pela esposa.

“Solaris”, filme de 1972 de Andrei Tarkovsky.
📷 “Solaris”, filme de 1972 de Andrei Tarkovsky. |Frame de Solaris

É ele quem realmente duvida se aquela é sua esposa, exatamente porque, essa dúvida provocada pela duplicidade da pessoa amada, faz surgir nele um fascínio, um medo e uma angústia.

Kris, projeta seu desejo e ele se realiza como vida e morte. A cada tentativa de salvá-la, ela morre novamente e, na projeção compulsiva de Kris, ela sempre reaparece, para morrer.

É a ideia de que os mortos, pela vontade onipotente dos que os amaram, podem voltar. E é, também, a ideia do duplo e da compulsão do eterno retorno, tão caras para a análise freudiana. São, como vimos no filme anterior, sentimento ancestrais, míticos, próprios da alma e, ao mesmo tempo, contemporâneos.

Contemporâneos porque “Solaris” serve como uma metáfora das nossas representações especulares, de espelhos, artefatos eletrônicos e reproduções, mas, também, de uma percepção que se desenvolve cada vez mais por simulacros, reprodução e duplicação, que tende a perder a noção do tempo, da história e, em última instância, de si mesmo. Nesse caso, Hari, como Kris, são tanto o vetor do estranho-familiar que não se (re)conhece, como seu objeto.

Nesse âmbito do contemporâneo que aludimos com “Solaris”, aqui, eu permito-me me apropriar da trilha deixada por Ernani Chaves, tradutor do texto de Freud e comentador da sua obra, em seu ensaio, “Perder-se em algo que parece plano” (em O infamiliar, autêntica, 2019).

Situando o conto de Hoffman e a leitura que Freud empreende desse texto no contexto das novas mudanças tecnológicas, como a fotografia e o cinema, Chaves afirma: “tal aproximação entre o mundo do ‘infamiliar’ e as formas contemporâneas de produção de imagens – hoje levadas a um extremo que Freud e seus contemporâneos não poderiam sequer imaginar – não é descabida, se pensarmos, por exemplo, na exploração “ad infinitum”, nos filmes e nas séries de televisão, das figuras dos mortos-vivos, zumbis, vampiros e fantasmas. As formas românticas do ‘infamiliar’, longe de terem desaparecido, continuam absolutamente presentes no nosso mundo midiatizado e fascinado pelas imagens”.

Max Schreck interpretando Conde Orlok em Nosferatu.
📷 Max Schreck interpretando Conde Orlok em Nosferatu. |Frame de Nosferatu

Sim. Continuam presentes graças, exatamente, a esses novos aparatos técnicos, mas esses aparatos fazem parte de um espírito. Uma disposição contemporânea não só pelo grotesco ou pelo terrífico dos filmes, mas, fundamentalmente, pela possibilidade de termos de lidar com as imagens que deles irrompem e que nós fazemos questão de contemplar, ignorar e esquecer.

Quantas fotos de nós mesmos, repetidas e, principalmente, “duplicadas”, temos em nossos aparatos eletrônicos? Exibimos nosso cotidiano, nossos afazeres, família e gostos.

Nessa compulsiva exibição, tratamos sempre de mostrar, mecanicamente, o que nós “seríamos” e ocultamos aquilo que nos desagrada, ou que, julgamos, ao outro irá desagradar e, então, ampliamos o filtro da projeção encantatória.

Nessas representações, talvez estejamos evitando que, não apenas uma certa realidade venha à tona, mas que a reprodução, manchada de vivência, se manifeste. Nessa dialética própria da fantasia, tendemos a ocultar ao que a nós, indelevelmente, pertence.

Na imagem, o que se quer mostrar não é a mera duplicação da vivência, mas outro duplo, o duplo que nos agrade e que não nos incomode. Compulsivamente, repetimos um eterno retorno psicótico, por isso repleto de fantasia, dessa contemporânea vivência.

No limite, a imagem de nós mesmos, sem os aparatos eletrônicos, parece, agora, guardar algo irrepresentável, demasiadamente próximo de nós e, ao mesmo tempo, inevitavelmente estranho, distante e, em certo sentido, angustiante.

Realismo demais de nós mesmos não é algo bem-vindo, é demasiadamente cru e a realidade parece ser sempre a mesma e cruel demais.

Em “Nosferatu”, o medo, a angústia, surgem do entrecruzamento de mundos que pareciam separados, a cidade e o castelo, a vida mundana e uma região na escuridão. Nas compulsões imagéticas contemporâneas, já não se pode mais separar mundos.

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E não porque eles convivem em uma sinérgica harmonia, mas porque sua separação, agora, pode ser realizada tecnicamente. O mundo da casa e da rua, separados, para esse “artificial” corte, não apenas não existem mais, mas estão totalmente encavalados, sobrepostos, montados.

Estamos em outros tipos de rituais. Colocamos o monóculo de Coppola e uma certa histeria de nós se apossa. “Ajeite esse fundo, ele está destoando do conjunto da imagem!”.

Um tipo de reprodução recalcada que, com o filtro, em sépia, procura arrumar uma mesa como se fosse um banquete, sem revelar o alimento da alma desalinhado.

Em “Solaris”, Haria afirma ter a sensação de que esqueceu algo. Kris, seu esposo, sabe que ela não pode lembrar porque ela é uma simulação instantânea, que não pode reconstituir toda a experiência anteriormente vivida.

A angústia do marido advém dessa condição, mas seu sentimento pela esposa, adormecido (semelhante à possessão de Ellen pelo Vampiro), compulsivo, ignora essa realidade em prol de um átimo de amor simulacional, que diante dele pergunta: “você me ama?”

Não seria, de certo modo, o mesmo proceder que desenvolvemos diante de nossa contemporaneidade tecnificante? Ao contemplarmos as simulações das imagens e dos dispositivos, não estaríamos diante, então, desse sentimento compulsivo que ignora o estranho, a repetição imagética e a duplicidade do Eu e do Outro?

A mulher simulacional de “Solaris”, por não ter o sentido do ado, deixa-se levar pelos momentos de prazer com seu ex-marido. Ele, também, a isso não se recusa, mas ele, ao contrário dela, por deter a experiência do que ocorreu, embora se entregue ao momento de prazer, sabe que ele é fugidio, que sob ele se encontra algo que lhe destina a morte do objeto amado e, por conseguinte, essa angústia dele não se afasta.

Poderíamos argumentar que a humanidade sempre tratou de recalcar seu infamiliar. Sim, isso é, inclusive psicanaliticamente, verdade. Mas a questão, reitero, é que a contemporaneidade levou essa atitude ao status de naturalização, talvez, “consciente”.

Naturaliza-se, agora, a repetição das imagens, a compulsão do eterno retorno pela fantasia, a vida como autômato e a dissociabilidade das vivências nas representações. Deve-se evitar – sem nem sempre conseguirmos, como sabemos – as crises de Nathanael.

Enquanto para Freud essas manifestações surgem menos frequentes na vivência, para contemporaneidade seu recalque é a condição do existir.

Se “Nosferatu” (1922) pode ser legatário do “misticismo e magia - forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães se abandonaram com satisfação - tinham florescido em face da morte nos campos de batalha. A hecatombe de jovens precocemente ceifados pareceu alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes haviam povoado o romantismo alemão, se reanimavam tal como as sombras de Hades ao beberem sangue”. (Eisner 1985, citado por Canépa, “Expressionismo alemão”, 2006), nosso expressionismo contemporâneo imagético edita, na palma da mão, um rosto, ou uma paisagem, sem a “feiura” de sua realidade. Velando pelo esquecimento e adornando a dor e a morte.

Reproduzimos, duplicamos, filtramos, editamos. Se isso pode revelar uma atitude que ignora o infamiliar que nos é próprio, isso não quer dizer que esse ignorar gere sempre um tipo de desconforto, angústia, no processo de percepção de nós mesmos.

A expressão jocosa que compara duas imagens, uma sem a utilização da técnica e outra na qual ela foi utilizada (“Na internet/ Na vida real”), é um chiste sintomático desse sentimento, desse espírito. A aceitação angustiante de Kris diante da simulada esposa não nos é estranha.

Talvez, nesse sentido, a grande mudança contemporânea desse aspecto seria, ao ignorar esse infamiliar que em nós habita, recalcar esses medos, essas angústias, gerando, posteriormente, um desencadeamento doloroso do Eu.

Agora, talvez, o afeto que estava em casa, acomodado, pela tecnicidade contemporânea, lá deve permanecer, e não se quer que, inesperadamente, ele torne-se um estranho do mesmo lar.

Uma infamiliaridade controlada. Mas sabemos que o infamiliar é sempre um hóspede fiel, seja em uma vila do Século XIX, seja em uma estação espacial do futuro, seja na tela para qual olhamos, compulsivamente, em busca de nós mesmos.

A plaqueta que inicia “Nosferatu” diz: “Cuidado para não dizer a palavra [Nosferatu] senão as imagens da vida se transformarão em sombras”.

Na contemporaneidade, reproduz-se e duplica-se a realidade para, em muitos casos, construirmos a sensação de que, de nossos corações imagéticos, jamais saiam, com sombras, as imagens da vida que não possam ser tecnicamente modificadas. Não podemos ter a sensação de que aquilo que deveria permanecer oculto, venha à tona.

Esse texto teve a honrosa consultoria de Ernani Chaves.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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