"Mais do que um ponto de venda de artesanato, aqui é um lugar de prática cultural, de encontro. Apresentamos nossos povos, nossas culturas, nossa diversidade para quem nos visita, para os clientes, parceiros e para todos que chegam". É com essa visão que Nice Tupinambá, jornalista, ativista ambiental e empreendedora no mercado da sustentabilidade define a Casa Ikeuara da Amazônia.
Localizada no bairro do Reduto, no coração de Belém, o empreendimento representa muito mais do que um espaço comercial. Ele nasceu como uma resposta concreta e necessária dos povos indígenas e suas múltiplas linguagens artísticas com a urgência de ocupar espaços urbanos com suas vozes, saberes e expressões artísticas, projetando a riqueza da diversidade amazônica a partir de um território próprio, autônomo e vivo.
"A Casa Ikeuara surgiu com a nossa necessidade de ter, em Belém, um espaço que ecoasse e expandisse a arte e a cultura dos povos originários", diz Nice Tupinambá, explicando que o nome "Ikeuara", significa "originário" em Tupi, e reflete perfeitamente a essência do projeto: ser a casa originária dos povos da Amazônia, um espaço onde arte, cultura, resistência e empreendedorismo social se encontram em harmonia.
E é nesse território que a artista trans indígena Maria Flor, mais conhecida como Mulambra, encontrou não apenas um espaço de exposição para sua arte, mas um ambiente de pertencimento. “Quando fui convidada para participar da Casa Ikeuara, fiquei muito emocionada, muito feliz. Eu sinto essa sede em Belém, a sede de visibilidade, de ter foco sobre as questões e tradições indígenas. E a Casa é isso, é uma grande galeria em exposição permanente. Muitas das peças ali poderiam estar em museus ou galerias de arte contemporânea porque não são só artesanato, são arte”, destaca.
Para Mulambra, a potência da Casa Ikeuara está em reunir saberes de vários territórios e ancestralidades em um só ambiente, onde a arte se torna ferramenta de resistência, memória e renovação estética. “É um lugar que demarca o agora. Não dá pra falar de arte, de cultura, de estética, de meio ambiente, sem falar dos povos indígenas. Antes da moda, a gente já usava brinco, já fazia nossas roupas com folhas, palhas, penas. Isso é tecnologia ancestral”, destaca.
A fala da artista trans indígena reforça a proposta central do empreendimento, que alia criação artística, identidade, território e coletividade, mas, principalmente reconhece todos os povos e suas linguagens.
A Casa nos dá a possibilidade de sermos quem somos. Não precisamos falar só sobre tema indígena, podemos falar sobre moda, sobre beleza, sobre arquitetura, sobre gastronomia... E ver nossas obras ali, reunidas, também encanta a nós, indígenas. Nos reconhecemos uns nos outros.
Maria Flor, Artista trans indígena e empreendedoraEconomia criativa como ferramenta de sobrevivência
Nice Tupinambá explica que empreender ainda é algo novo para a população indígena. No entanto, diante das pressões externas, vendas de artesanato e da arte tornaram-se fontes vitais de sustento para muitos territórios. Diante desse cenário, a Casa Ikeuara desponta como uma vitrine significativa para mais de 300 estudantes indígenas matriculados na Universidade Federal do Pará (UFPA), que encontram a oportunidade de comercializar suas produções artísticas, contribuindo para a economia de suas famílias e comunidades.
O modelo de negócio adotado baseia-se na economia dita como colaborativa e justa. "Os parentes botam a arte aqui dentro para vender e a maior parte volta para eles", conta Nice, ressaltando que esta é uma forma de garantir que os próprios artistas sejam os principais beneficiários de seus próprios trabalhos.
Arte indígena: um trabalho feito com consciência e respeito à natureza
Um dos principais objetivos da Casa Ikeuara é desconstruir a percepção equivocada sobre o artesanato indígena. Nice, que atua como curadora no empreendimento, explica que o espaço conta com "verdadeiras obras de arte, que têm muito valor não só pela durabilidade, mas também pelo que representam, de resistência, de sabedoria, de força ancestral que carrega cada peça".
O espaço abriga criações de artistas cujos nomes permaneceriam no anonimato, mas responsáveis por obras que carregam séculos de conhecimento tradicional. Ironicamente, muitas dessas técnicas e padrões são apropriados pela grande indústria, que lucra com a cultura indígena sem reconhecer ou remunerar seus criadores originais.
A Casa Ikeuara posiciona-se como um ponto de resistência na luta dos povos indígenas no Brasil, promovendo a a mensagem de que é possível viver em comunhão com a natureza sem degradá-la, de modo a manter a biodiversidade e os ecossistemas amazônicos preservados.
Nice Tupinambá destaca a importância de sair da invisibilidade e desconstruir estereótipos. "Por muito tempo a gente foi taxado de povo que não trabalha e ao contrário, a gente trabalha muito, só que a gente trabalha com consciência e respeito à natureza", reforça.
Brilha Gibson é professora e cliente fiel dos produtos da Casa Ikeuara. Para ela, a compra no espaço vai além do aspecto financeiro. "Cada item conta a história de um povo, então é diferente de eu comprar em qualquer lugar quando eu posso comprar uma peça aqui. Eu valorizo muito tudo isso porque são peças únicas, que não têm preço, têm valor e é inestimável", justifica ela.
Profissionalização da mão de obra indígena
Um dos grandes desejos do projeto é a profissionalização do trabalho indígena, com o objetivo de elevar o reconhecimento e a valorização adequada das habilidades artísticas tradicionais e sua importância cultural e econômica.
Com mais de 12 anos de carreira artística, a indígena Alice Hermosa mantém seu sustento exclusivamente com o seu trabalho, através da parceria com a Casa Ikeuara.
Ser uma artista independente, mãe solo e mulher racializada é uma jornada repleta de desafios e conquistas. Ter a oportunidade de abrir as portas da Casa Ikeuara para apresentar minha nova linguagem, os grafismos em tecidos, é mais do que um espaço de expressão, é uma chance de continuar vivendo de maneira digna, sustentando minha filha, garantindo sua alimentação e educação.
Alice Hermosa, Empreendedora indígenaPara Alice Hermosa, o artesanato indígena ainda carrega um certo preconceito dentro do comércio, "por não ser um trabalho automatizado. No entanto, ela acredita que o cenário está mudando, principalmente com a visibilidade da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), em Belém. "Ultimamente, a gente tem visto a valorização desse trabalho, mas por muito tempo ele foi desvalorizado", complementou.
Identidade amazônica como diferencial
Alice Hermosa, que desenvolve trabalhos em parceria com a Casa Ikeuara, representa a nova geração de artistas amazônicos que encontram na identidade regional sua força criativa.
"Tudo o que eu faço tem a ver com a arte, são várias linguagens e todas elas contam a mesma história: a minha história, que é daqui de Belém do Pará, uma história amazônica", explica Alice.
Hermosa trabalha com múltiplas linguagens artísticas - tatuagem, muralismo, sketchbook e artesanato - e busca retratar em suas obras situações em que os nortistas se encontram, além de formas e cores que só são vistas em Belém. Para ela, a identidade amazônica representa um diferencial competitivo significativo, pois acredita que "essa identidade amazônica a faz chegar a outros lugares que nem todo mundo consegue chegar, dentro de sua própria própria terra".
“Quando você aposta na economia dos seus parentes, dos indígenas, da galera artista, da galera amazônica, quando você investe o seu tempo e espaço nos projetos da galera que enxerga o mundo como você, é uma forma de caminhar para um lugar onde nós tenhamos um espaço que não pode mais ser tirado de nós", pontua a empreendedora.
Jomara Tembé empreende através da arte gráfica. Para ela, é de fundamental relevância ter um espaço onde a sua arte e o seu trabalho são valorizados. "Nossos grafismos corporais são estampados em diversos tecidos e esse reconhecimento é essencial para a inclusão social e econômica dos parentes que vivem de sua arte", reforça.
Diversidade cultural e turismo imersivo: experiência que vai além do consumo
A Casa Ikeuara representa mais de 30 povos indígenas, cada um com suas particularidades culturais, técnicas artísticas e histórias de resistência. O espaço funciona como um verdadeiro museu vivo, onde visitantes podem conhecer a diversidade étnica da Amazônia, por meio de suas expressões artísticas.
Além da comercialização de arte indígena, o empreendimento oferece experiências culturais imersivas, onde os visitantes têm a oportunidade de conhecer diferentes povos, experimentar a gastronomia tradicional e aprender sobre dialetos e culturas específicas. O projeto também inclui planos para desenvolver um turismo direcionado aos territórios indígenas, por meio das chamadas "Expedições", que visam mostrar não apenas a beleza cultural, mas também as lutas e resistências desses povos pela preservação de seus territórios e tradições.
A ideia do espaço, segundo Nice Tupinambá, é promover uma experiência que vai além do consumo. "Não é exatamente vir comprar, é conhecer a diversidade, é poder conhecer a história de cada artesão, de cada artista", explica ela, ressaltando que a Casa Ikeuara da Amazônia funciona como um empreendimento de economia criativa, resistência cultural e valorização da arte indígena em Belém, que promove a sustentabilidade e a preservação das tradições dos povos originários da região amazônica.
Reportagem: Mayra Monteiro e Tarik Duarte
Edição: Andressa Ferreira
Multimídia: Mayra Monteiro
Coordenação Sênior: Andressa Ferreira e Gustavo Dutra
Coordenação Executiva: Ronald Sales
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